Quando comecei a escrever não havia
mais do que ideias a voar, como pássaros selvagens, na minha mente confusa.
Tentei apanhá-los com as mãos nuas, mas eles continuaram a escorrer-me pelos
dedos, e a circundar a minha mente vezes sem fim. Foi então que os tentei
segurar com um lápis, e eles docemente foram pousando na grafite prateada, um a
um. Primeiro uma frase, depois um enredo, e quando estes voaram para longe, uma
personagem, primeiro enevoada, como uma mulher num campo coberto pelo nevoeiro
de uma madrugada de Inverno, depois, a cada linha, a cada página, uma mulher
descoberta pelo amanhecer vagaroso de um dia de Primavera.
Aconcheguei-me no cadeirão, com
aquele mundo a descobrir assente nos joelhos, e escrevi a primeira frase.
Depois a segunda, e quando comecei a terceira, senti o ar à minha volta a
mudar, e o caminho começou a clarear.
E foi então que eles surgiram, uns
taciturnos e desconfiados, como se temessem que eu não os soubesse representar
e outros tão alegres que pareciam dançar. Uns apareceram-me ainda crianças,
meninas traquinas de saias rodadas, outros já homens feitos, mas ainda cheios
de esperança. Ao canto da sala surgiu-me um velhote de rosto cansado, mas um
sorriso de contentamento que me encheu a alma. Ao meu lado as três, a pequena que
não conhecia a morte; a mulher determinada com a ceifa empunhada; e a mulher de
rosto sulcado e olhar a raiar a ternura.
E foram-se juntando à minha volta,
estes fantasmas, a sussurrar-me ao ouvido para que lado o rio devia correr.
Vi as palavras escorrerem pela
ponta do lápis com uma rapidez tamanha que lutei para as acompanhar com o
movimento da minha mão, e as figuras foram-se instalando ao meu lado, cada uma
no seu recanto, a olharem-me com determinação. Os sussurros foram-se tornando mais
altos, cada vez que, na minha cobardia, temia o rumo da história; ou quando por
arrogância achava saber mais que eles; e dei-me por vencida. Deixei-os entrar
no meu mundo, e guiar-me pelas estradas sinuosas do interior agreste, pelos
campos de trigo e centeio, e pelas casas simples caiadas de branco e azul, com
poiais de pedra para descansar ao sabor da brisa numa tarde de calor.
Guiaram-me por trincheiras imundas de lama e sangue, e foram eles que
finalmente me arrastaram de lá quando me quis deixar lá ficar., e me fizeram
descansar à beira da ribeira, com os pés a mergulhar na água fresca, e subir a
colina íngreme, para poder vislumbrar o horizonte imenso que descobriam em mim.
E página após página foram-se
tornando mais reais, mais presentes, mais Eu, até que Eu deixei de existir.
Depois deixaram-me com um adeus
saudoso dos que sabem que precisam descansar nas páginas que lhes cabem, e
deixar lugar para os que ainda têm o que contar. Vi-os partir com lágrimas nos
olhos, e por mais de uma vez tive de largar o lápis e secar o olhar, para poder
continuar. Vi-os ir, um a um, na altura em que quiseram, quando cobriram a
minha mão com a deles, e disseram: “O meu caminho terminou” e aceitei cada
morte como a de um ente querido.
Ela continuou comigo, primeiro a
menina traquina de vestido rodado que não sabia ser criança; depois a mulher
valente de lenços coloridos que lhe cobriam os cabelos negros revoltos; e por
fim a mulher enlutada com o coração mais terno do que sabia aceitar. Discuti com
elas, porque nenhuma queria perceber que faziam parte da mesma linha, que eram
continuações umas das outras, mas acabámos por nos respeitar. Aprendi a amá-la,
e ela tornou-se parte de mim, tão importante que, quando me disse “Adeus”,
morreu-me um pedaço da alma, e ao vê-la partir, com a sua saia de algodão
grosseiro e o lenço negro a cobrir-lhe os cabelos já grisalhos, fiquei seca de
palavras, com o lápis na mão, a aguardar apenas a palavra “Fim” para saciar a
obsessão.